Esse foi o fim. Sentado na beira de um penhasco, olhando o
horizonte, uma bela vista por sinal, refletia calmamente sobre os últimos e
pesarosos eventos de minha ligeira existência. Decidi dar cabo naquele
sofrimento, me levantei e posicionei os dois pés com suas metades para fora do
limite do abismo que se abria abaixo de mim. Fechei os olhos. Vi uma revoada de
pássaros enormes que carregavam em seus bicos chaves douradas. Para aonde eles
iam? Senti a terra tremer e atrás de mim um túnel de cores brilhantes surgiu
como um trem e me envolveu naquele redemoinho de pânico como um turbilhão
causado por ondas marítimas revoltas. Um eco se ouviu naquele local. Nas paredes
desse túnel tive a visão de estranhos andando em ruas estreitas, seus rostos
não eram dotados de olhos, bocas ou narizes, mas em alguns eu podia contemplar
uma face conhecida. Tive medo. O eco estava mais forte. Do chão brotou um gramado
espesso, dono de um verde muito escuro, e logo me vi perseguindo coelhos
brancos, todos muito parecidos, porém seus olhos eram de formatos e cores
variadas. Procurava por um específico, de olhos pequenos e totalmente avermelhados.
Não o achei. O túnel voltou a me envolver. Fui guiado então até uma praia. O
tempo estava instável, com cara de chuva, mas mesmo assim queria muito entrar
no mar. Vi um grande amigo se aproximar na companhia de outras pessoas, não
queria a companhia de ninguém, estava ali para ficar sozinho e comungar aquele
momento somente com a manifestação agressiva que se fazia presente nas ondas
daquela praia. Porém antes mesmo que eu pudesse correr em direção ao mar para
evitar aquele confronto social, fui abordado pela presença irradiante de um dos
mais belos fenômenos da natureza que eu já havia visto. Não há forma de ser
justo com aquela forma. Posso somente dizer que fui guiado sem perceber até as
águas agitadas do oceano e lá fiquei por um período razoável, o suficiente para ver meus dedos enrugados. Sem aviso prévio o mar secou e se tornou um deserto. Não
compreendi o que havia acontecido, nem com aquela massa de água colossal, nem
com os outros seres que estavam por perto, tudo sumiu. Meus olhos agora estavam
cansados, como os olhos de um moribundo que não dorme há dias, eu os sentia
inchados, como quando acordamos de horas seguidas de sono. Novamente o túnel me
envolveu. Dessa vez o eco era ensurdecedor. Tapei os ouvidos em uma tentativa
inútil de abafar aquele som. Era algo vocalizado. Eram pessoas. Se fosse uma
única pessoa, certamente seria um som suave, mas eram todas as pessoas do
mundo, as que estavam vivas e as que já estiveram. Fiquei ensandecido. Parece-me
que isso durou algumas horas, já não tinha mais condições de quantificar o
tempo. Vi então diante de mim, brotar do chão, uma enorme mão, primeiro os
dedos, depois a palma e por fim o pulso. O som intenso parou. A mão pendeu para
trás e abriu os dedos o máximo que pode, acima, no firmamento, um dos pássaros enormes
que tinham pairado sobre mim deixou a chave que carregava em seu bico cair,
acertando o centro daquele membro gigantesco. Com destreza ímpar a chave
dourada foi posicionada entre o polegar e o indicador da mão, ela se aproximou
com cautela do meu peito e fez a chave me tocar, senti um ardor mortal, vociferei
um urro de dor, eu mesmo me estremeci com o desespero contido naquele brado.
Meu peito se abriu ao meio, eu tentava em vão, segurar as duas metades de mim
que se separavam para evitar aquele espetáculo de horror, mas não importava
quanta força fizesse nada adiantava. Então de dentro de mim saiu meu coração,
esplêndido, de um vermelho vívido, pulsante e proprietário de um vigor
descomunal. Ali, naquele momento, não tive dúvidas e entendi exatamente o que
devia fazer. Em um piscar de olhos, vi novamente o horizonte que imperava
naquele penhasco, meus pés ainda estavam com suas metades para fora do limite
do desfiladeiro. Respirei fundo, dei meia volta e caminhei em direção à vida para
doar a quem merecesse o melhor de mim.
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