quarta-feira, 24 de abril de 2013

Áspera


Senti sua palavra áspera descer pela minha garganta, arranhando minha confiança e desordenando o que não é capaz de ser racionalizado. Por subsequentes madrugadas, assisti em estado de tensão, a última apresentação do mesmo rolo de filme, que tinha como tema principal, mas não exclusivo, minha estadia em um porto inconcebível de águas ora cristalinas, ora traiçoeiras. Tentei me convencer de que o intervalo médio entre nossa concepção, não seria obstáculo para quando fossemos presenteados com o dom da caminhada cognitiva. Nisso eu tinha razão. Também em pouco tempo, fui capaz de edificar o prazer das nossas reflexões conjuntas, em detrimento de uma calcificação genética mal assentada. O compasso desvairado das rotações e translações faz com que fiquemos abismados nos momentos em que esses eventos se manifestam. Estranho mesmo foi passar um dia inteiro esbarrando em lembranças e fantasias juvenis, e de repente, como em um espetáculo pirotécnico que é interrompido abruptamente pelo advento de uma tempestade recheada de ventos impetuosos, depois de ter aparado meu desagrado, você sumiu da minha mente. Mas a azia causada pela rispidez das sentenças previamente anunciadas, ainda me preocupa. Dizem que o melhor tratamento para essas coisas é cuidar bem da alimentação, no meu caso, sem mais retardos, deglutir as minhas próprias soluções.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Todos nós.


A mosca que se arrasta sobre meu rosto, a aranha que mora na conjunção da minha prisão, o mosquito que se oculta na estrutura do meu alívio, a barata que marcha pelo altar da comunhão, o rato que reside nos dejetos dos dejetos, o asco, a fobia, o desprezo. Nada é tão assustador quanto a fera que nos persegue em um sonho infindável, a fera com o olhar, propósito e essência assassina, a fera domável, e que mesmo assim, tem a condescendência de seu mestre para obliterar as vísceras alheias ao menor vestígio do odor intolerável do medo. No percurso de descida das sete camadas, um ancião nos revelou, em apenas poucos segundos, que ídolos incompreensíveis são nossa única chance de salvação. Colapsos doentios se espalharam com violência sobre a multidão e o caos e o terror reinaram. Ferragens animadas fragmentaram e pulverizaram a carne, oradores impecáveis se esquivaram do fardo, anunciações populares prestaram adoração à indignação, a massa sofreu, a ceifa agiu e o intervalo contínuo não testemunhou nada de novo. E diante desse destino, ao compreender que o todo se deteriora ao nosso redor, e que, na promessa de vingança, a humanidade aceita e se alimenta dessas nefastas e tardias carnificinas, os justos choraram.

domingo, 14 de abril de 2013

Lhes declaro.


Aconteceu em uma noite agonizante de uma data trivial. Perdido nas memórias de uma festa que aconteceu há muito tempo, ele viu uma alma que, de modo inocente, já havia sido presenteada por sua mais íntima e sincera oferenda atemporal e que agora estava trilhando um dos caminhos sem volta. Essa estrada específica é sem volta em sua, mas não concebida somente por si, concepção ideal de um mundo sem atropelos filosóficos, individualistas, egoístas e sanguinários. Tratasse de uma jornada que, constantemente, aprisiona pobres peões em correntes sagradas e que constrói as instituições mais belas e ao mesmo tempo mais perversas de que já se teve notícias. A alma que havia sido fitada por seus olhos virtuais já lhe despertara todos os tipos de sentimento, o amor supracitado, a inveja que oxida as convicções primas, a pena que alimenta o orgulho e até mesmo a ira de temível, inconsequente, irreparável e imprevisível presença. Dessa vez, nesse cenário, nessa noite de curtas horas, nesse cubículo caótico de odores e configurações detestáveis, ele não soube o que sentir. Não teve coragem de lhe desejar sorte, não teve vontade também, nem ao menos sabia se isso faria alguma diferença, pois não era em seus desejos, fossem quais fossem, que o destino se embasaria para dar ou tirar qualquer fato pertinente da existência futura daquela compleição metafísica. A conjunção temporal definitiva ainda estava por vir, e com ela suas consequências. A ele, solitário e amargurado, o único fardo que lhe restou foi o de sua própria vida.

sábado, 13 de abril de 2013

Campeões vespertinos.


Lembrei-me de uma época negra, em que vivia acompanhado por campeões, e conosco sempre estavam os espólios gloriosos de batalhas, que ainda hoje podem ser ouvidas. Nesse mesmo período, conheci gigantes de uma ilha distante, que entoavam canções curiosas e que serviram de inspiração para fragmentos textuais, que, por várias vezes, foram vistos como marginais por membros ignorantes de uma sociedade sórdida. Os gigantes nos aconselharam, a mim e aos campeões, a nunca falarmos sobre a morte, pois um mago paranoico poderia, com a ajuda de uma mulher maléfica, nos conduzir ao desespero profundo e sem fim. Em uma vila sonolenta nós visitamos uma caravana interplanetária. Compramos mantimentos para a continuação de nossa jornada e trocamos uma nota musical por uma aliança carnal entre um anão bárbaro e uma serpente albina. Testemunhamos crianças que saiam de suas covas em busca de mudanças para seus futuros arruinados. Ouvimos contos que eram apresentados em coro por homens férreos, torturados pela amargura de não haver mais vagas nem no céu nem no inferno para suas almas malditas. Nesse momento, um buraco se abriu nos céus e de lá, cavalgando em um animal de dez cabeças, apareceu um cavaleiro de neon. Ele trazia em sua mão esquerda uma espada de prata, e na direita uma mensagem datilografada em código binário. Depois de sessenta e oito horas descobrimos que deveríamos marchar para o norte, onde havia uma missão vital para concluirmos. Seguimos a sétima estrela e depois de nascermos novamente chegamos ao nosso destino. Desumanizamos o ídolo eterno, envenenamos o poço dos desejos, levamos um povo à liderança, sabotamos um castelo de fumaça, escrevemos feitiços na pele de um cordeiro, e depois de termos libertado nossas mentes das preocupações de um cotidiano inexistente, falecemos na promessa da juventude eterna.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Domingo 23:54.


Ali estava ela, sentada na janela, olhando o fim do mundo, como se houvesse alguma novidade naquilo.  Uma ou duas companhias já seriam suficientes para tapar o buraco que havia no meio do quarto. Compartilhar uma ideia original, uma piada sem graça, ou mesmo um pensamento idiota já seriam uma novidade para a semana exaustiva que ainda estava por vir. As olheiras profundas não deixavam dúvidas de que o cansaço era seu maior inimigo. Mas cansaço de que? Pergunta tão fácil de ser respondida que ela nem se dava o trabalho de refletir sobre o assunto. Viu um gato caminhar pelo telhado vizinho e pensou que o bichano podia virar um pombo, voar até o outro prédio, se transformar em aranha, pegar um clarinete emprestado com o garoto que dormia, tocar Coltrane e encher o saco da vizinhança. Riu do próprio devaneio. Tomou um farto gole d’água da garrafa de plástico vagabundo que estava ao seu lado. Viu que não havia estrela no céu, normalmente já era difícil de ver alguma, mas as nuvens que cobriam a noite impossibilitavam a aparição dos astros. Teve saudades do interior. Os olhos estavam cada vez mais pesados. Se não tivesse aquele compromisso desagradável na manhã seguinte ia ver algum filme besta na televisão, esses mal dublados de fim de noite. Olhou para o relógio e contou quantas horas iria dormir se pegasse no sono naquele exato instante. Ouviu uma sirene e refletiu que não queria estar na rua, mas seu atual abrigo também não era o que desejava. Lembrou-se do almoço. Ficou imaginando quantas pessoas estariam acordadas àquela hora, pensando que deveriam estar dormindo. Na verdade, ela também estava perdida nessa ideia. Foi escovar os dentes e matou um mosquito no corredor. Escolheu a última música da noite com muito cuidado, o processo levou sete minutos e atrasou seu sono em pelo menos vinte e oito. A última música nunca é a última, não resistiu, ouviu mais cinco. Olhou de novo para o relógio. Não ficava mais desesperada, a rotina já havia lhe anestesiado. Desligou o som, se benzeu, deitou-se com a barriga para cima, olhou para a penumbra que se formava em seu quarto, respirou fundo, seus olhos se fecharam lentamente e pouco antes de pegar no sono, chorou em silêncio.

sábado, 6 de abril de 2013

Sete dias.


Depois do descanso foi decretado um estado de calamidade continua durante sete dias. No primeiro dia ele assistiu especialistas regurgitarem teorias que podiam salvar sua vida ,quando o ferro e o fogo tomassem conta do oceano. No segundo dia ele teve um encontro repentino com uma figura divina de feições perfeitas e um olhar cativante, que jurou proteção aos seus queridos, desde que assinasse um contrato com suor e sangue. No terceiro dia ele foi obrigado a atravessar um rio de chamas mortais, e mesmo com medo, depois de cumprir a tarefa, se sentiu bem. No quarto dia sua alma, acompanhada de mais vinte e três, se agarraram a dispositivos de sobrevivência mutua, após terem se lançado voluntariamente a um lago de águas turvas. No quinto dia ele assistiu a história do imaginário humano, exposta sobre papéis e telas complexas, nesse dia quando chegou ao seu lar teve seu coração perfurado pelo ódio. No sexto dia testemunhou obras inacreditáveis, se entregou a gula e desejou a companhia certa para a noite perfeita. No sétimo dia o sol lhe cegou, rezou em vão, e desejou outra realidade, pois seu calabouço e seu carrasco já estavam a sua espera.