terça-feira, 26 de março de 2013

Intermitência laboral.


Deslizei quarenta minutos pelo subterrâneo para encontrar um simpático texugo que me deu como tarefa a busca por um papiro. Caminhei por uma cidade inteira, atravessei um rio leitoso, escalei oito lances de escada, encontrei espíritos em procissão, transpassei um presidente, entrei em uma catedral, corri pelo século XVII, assisti um coro juvenil, testemunhei um brado imperial, me acomodei na antiga morada de uma rainha, vislumbrei paredes banhadas a ouro, ajoelhei-me diante de um anjo, olhei para minha infância, me perdi em novecentos e oitenta e sete títulos, apartei o conflito de burocratas, me alimentei ao lado de anciões ignorantes, me indignei com o desejo, observei o cavaleiro de metal, andei por corredores de madeira, conversei com desconhecidos, vi a pobreza, vi a indiferença, vi o vício, e por fim, ouvi sinos que me delataram o caminho, e no alto de uma montanha, dentro de um baú, em cima de um travesseiro, enrolado peculiarmente, estava o papiro que o texugo havia mencionado. Levei imediatamente o artefato para o animal, que com uma piscadela e um sorriso satisfeito, apanhou aquele singelo objeto e disse: “Pronto, agora a culpa é toda sua.”.

terça-feira, 19 de março de 2013

Refeições.


Acordei indisposto, mas mesmo assim me dirigi ao purgatório. No café da manhã foram servidos veludo, submissão, e um naco de carne com muita gordura, o melhor foi poder pagar com agressividade, insultos e com uma bela segmentação vívida das minhas reservas genéticas. O almoço foi frio, misterioso, e digno de contemplação e desejo, no fim tive a chance de quebrar o clima estranho e ganhei como recompensa um sorriso formoso, um olhar charmoso e um código promissor. Quando cheguei a minha casa, um pequeno lanche vespertino estava a minha disposição, nele encontrei uma dose cavalar de insatisfação e muita curiosidade por conta do que havia por baixo do tecido negro. A refeição foi devidamente tratada com provocações e um recipiente sedoso acabou molhado por um acidente não acidental, mas foi só. Mais tarde, de surpresa, fui agraciado com a última ceia, essa sim saborosa, cálida, completa, permissiva, que começou com tons comportados e contidos, mas que se revelou com rapidez insana e intensa, proprietária de uma textura suave, perfumada e viva, a melhor em anos devo admitir. Ainda tive a oportunidade de desfrutar de reflexões originais como sobremesa, fato que me surpreendeu agradavelmente. Dormi como pedra e o melhor de tudo foi, na manhã seguinte, despertar em outros ares.

domingo, 10 de março de 2013

No fim.


Não havia dia lá, somente a escuridão. Não era possível contabilizar o tempo, fato que me levava a uma confusão incomum, já que até ali eu havia sido adestrado a seguir as mazelas impostas pelo mesmo.  Acima de minha cabeça era possível contemplar um céu coalhado de estrelas, o que de alguma forma me trazia esperança. Porém era uma caminhada estranha, não sabia para onde estava indo, mas meus pés continuavam insistindo em me conduzir para algum lugar. No fim acho que não havia outra opção. Praticamente todas as iniquidades fisiológicas eram ausentes lá, mas eu continuava recheado de sentimentos, era o que restava. Existiam outras pessoas que faziam essa caminhada, porém elas pareciam não ser agraciadas com o dom da comunicação, pareciam todas conformadas com a procissão de tom fúnebre que se desenvolvia ali. A maioria era proprietária de olhares e expressões indiferentes. Além das pessoas, nos acompanhava um uivo constante proveniente do vento, hora quente, quando soprava contra nosso rosto, hora gélido, quando parecia nos empurrar, como se estivesse dando forças para que a caminhada se concluísse. Consegui entender que aquele local se tratava de um deserto, mas não esses de dunas altas e areia pálida, se tratava de um desses desertos de pedras, com um solo rígido e que maltrata os pés e o corpo de quem acaba pisando ou tropeçando em alguma rocha no caminho. Essa era outra coisa possível de ser sentida ali, dor. Todo meu corpo já estava exaurido, os pés ardendo, pois suas solas já haviam se tornado carne, mas por algum motivo desconhecido era impossível parar e descansar. Em dado momento pode ser visto de longe uma luz. Essa luz emanava da terra, e era avermelhada como fogo. Aproximando-se do local, foi possível perceber que essa luz era proveniente de uma enorme cratera cravada no meio da paisagem. Foi então que eu percebi que esse era meu destino, todos que ali estavam caminhavam para aquele imenso buraco. Quando meus pés finalmente me fizeram alcançar a beira da cratera, vi o quanto ela era profunda e dona de uma forma cônica, como um funil, seu fim era como a boca de um vulcão e labaredas de fogo saiam do centro da cavidade. Esse era o destino de todas as pessoas que vinham caminhando de todas as direções do deserto. Não sei discernir o que, mas algo me empurrou para dentro daquele pesadelo, e comecei a deslizar pela superfície escorregadia daquela abertura, feita de areia negra e rochas pequenas e médias, diretamente para o abismo de fogo. Testemunhei inúmeras pessoas lutando contra aquela queda, era uma imagem desesperadora, muitas daquelas pessoas choravam e tinham a mais verdadeira expressão de pavor estampada em seus rostos. De dentro do buraco flamejante era possível ouvir gritos, berros e urros aterrorizantes. De tempos em tempos uma lufada extremamente quente vinha de lá, fazendo com que nossos corpos se inflamassem. Nada mais podia ser feito naquele momento, não importa o quanto nós lutássemos todos, invariavelmente, caiam no olho de fogo daquela fissura. Eu, por minha vez, decidi abrir os braços e receber de peito aberto o caminho que escolhi.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Reflexo


- E ai?
- E ai...
- Então, o que você acha que nos torna especiais?
- Como é que é?
- É. O que você acha que nos torna especiais?
- Como assim?
- Pois é. Como assim. Esses dias eu li uma frase que dizia mais ou menos o seguinte: “Só não jogo tudo para o alto por que depois vou ter que sair catando.”. Me soou mal, com um tom covarde, dessas pessoas que morrem de insatisfação pelo que são e pelo que tem, e ao mesmo tempo morrem de medo de arriscar, de tentar mudar a mediocridade de suas vidas.
- É estranho mesmo.
- Então, e quanto a nós? O que andamos fazendo para não sermos vítimas desse mesmo mal?
- Muito pouco, eu acho. Tá foda.
- É tá foda.
- O pior é que a gente não tem muito que fazer, a não ser esperar.
- Esperar e ver o desenrolar das coisas, é meio que uma atitude preguiçosa, não?
- É.
- Bom eu só espero que a lição aprendida aqui seja muito boa, por que não tá fácil.
- É.
- Enfim, acho que o mais importante são as perguntas que nos fazemos, e como às respondemos.
- Não entendi.
- É. Tipo assim, vale realmente a pena passar por tudo isso? Vale o tempo e o estresse?
- A tá, é algo a se pensar.
- Mas eu não sei se essa é a pergunta certa.
- A pergunta certa deve ser: “Eu sou feliz?”. Acho que isso já é o suficiente.
- É, mas eu acho que a gente tem que ir além. Acho que a pergunta certa é: “Eu me admiro pelo que eu sou?”. Isso sim pode fazer diferença na forma com que enxergamos nossas vidas.
- Verdade. Acho que isso pode nos mudar para o bem, ou para o mal. É quase que uma armadilha.
- Se soubesse disso antes não teria investido em um clima tão abafado, teria ficado com a brisa suave que soprava na minha antiga varanda.